Reprodução de uma ótima matéria com Patricia Marx que saiu ontem no site da jornalista Heloísa Tolipan, matéria originalmente no link abaixo:
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Cantora atravessa mais de quatro décadas de carreira com um novo álbum homenageando Ivan Lins e conta histórias inéditas, como a de quando foi convidada a cantar numa banda de axé. O sucesso de “Quando Chove”, ressurgido com a reprise de “A Viagem”, reafirma seu vínculo afetivo com o público e a permanência de sua obra. Hoje, além de cantora e compositora, Patrícia cursa Psicologia e prepara-se para atuar na Psicanálise, ampliando sua escuta para além da música. Para ela, o palco e o divã são extensões do mesmo gesto: acolher e transformar o outro pela escuta. Entre o pop e o silêncio, Patrícia segue se reinventando sem jamais perder sua essência.
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Ao longo da carreira, ela já foi muitas. Patricia, Paty, Patricia Marques — até, finalmente, assinar o nome que hoje se consagra como uma marca de autenticidade e trajetória: Patrícia Marx. O percurso, que atravessa mais de quatro décadas, é também o espelho de uma artista que se reinventa a cada ciclo. Um dos capítulos mais luminosos dessa história remonta a 1994, quando lançou o álbum “Ficar Com Você”. O disco reuniu sucessos que marcaram a música pop brasileira da década. Entre eles, “Quando Chove”, composição de Nelson Motta sob versão de Pino Daniele (1955–2015), que voltou recentemente às rádios e plataformas digitais graças à reprise – mais uma – da novela “A Viagem”, de Ivani Ribeiro (1922–1995), na Globo. Patrícia vê esse retorno não como acaso, mas como confirmação de uma permanência: “Vejo essa música como um presente que remete à minha imagem de uma maneira muito bonita, especial e espiritual, como a história da novela”.
Há algo de circular nessa coincidência: enquanto um álbum de 30 anos atrás é relembrado, Patrícia lança um novo disco, também voltado para o passado — não o seu, mas o da canção brasileira. O título vem de um verso de “Cartomante”, de Ivan Lins, homenageado central do trabalho: “Nos dias de hoje, esteja tranquilo”. Todas as faixas do disco são de Ivan. O gesto é um exercício de escuta. “Eu já estava há um tempo ouvindo composições do Ivan Lins, antigas, álbuns emblemáticos e outros esquecidos pela música brasileira. E, ouvindo esses álbuns, comecei a me apaixonar muito pelo trabalho dele e a estudar toda a trajetória, a evolução de composição e de voz”.
Patrícia Marx parece estar sempre em movimento. Depois de mais de quatro décadas de carreira, atravessando o pop adolescente dos anos 1980, a sofisticação urbana dos 1990 e incursões pela música eletrônica e independente nas décadas seguintes, a cantora agora amplia o horizonte para um novo território: a mente humana. Quer ser psicanalista. “Eu quero fazer pós-graduação em psicanálise. Eu me interesso muito pelo social e temos que ter bases para atender comunidades, sociedades e mudar a partir do ser humano. Fazê-lo se reconhecer como um ser de direitos”.

O ponto de virada veio após assistir ao longa vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, “Ainda Estou Aqui”. “Depois que conferir o filme fiz um link a esse passado que as pessoas, de repente, querem apagar — das coisas bonitas e também políticas da história da música brasileira e da própria história do país. Esse álbum tem muito a ver comigo, com certa nostalgia de um amor mais puro, transparente, verdadeiro, maduro, que existia no passado. Então, eu estou fazendo muitas pontes com esse trabalho”.
"Há um apagamento da música brasileira boa, rica, que nós, já tivemos – e temos. As pedras fundamentais da música parecem estar sendo esquecidas" – Patrícia Marx
Nos últimos anos, tornou-se comum o diagnóstico de que a canção popular brasileira atravessa um processo de empobrecimento, vítima da urgência do mercado e da repetição de fórmulas. Patrícia não nega a força dessa percepção, mas a interpreta com precisão crítica: “Eu acho que falta um contexto de novidade. Um repertório histórico. Então, eu sinto que é um lugar ainda meio cru. Falta a narrativa desse momento musical brasileiro. Porque a narrativa de antes, a gente já tem. Vejo, por exemplo, remix de coisas antigas que eu não gosto, releituras que eu não aprovo. Acho que é necessário, numa releitura, respeitar aquela arte. Humildemente se colocar à disposição de divulgar, acrescentar e somar, e não retalhar. Hoje, tudo tem a ver com essa velocidade digital, com a falta de paciência, experiência e vivência do momento. Tudo é muito rápido”.
"A música, que é um instrumento invisível, precisa atingir as pessoas. Elas precisam se sentir afetadas pela música e de uma maneira orgânica. Hoje pela internet, tudo é muito mais imagético. Então, falta um corpo à canção popular" – Patrícia Marx
Hoje, Patrícia cursa Psicologia e já vislumbra o momento em que conciliará o palco pela clínica. “Eu não sei assim como é que vai ser. São públicos bastante diferentes. E acredito que a pessoa que vai para a clínica procurar psicanálise, terapia, vai por sofrimento. Eu não acredito que ninguém vá ali me pedir um autógrafo. Mas na clínica é um lugar para cuidar do sofrimento, da saúde mental. Estou muito empolgada. Eu sou muito apaixonada pela Psicanálise.
"Eu tenho um lugar de voz na música, e meus pacientes, terão um lugar de voz na clínica" – Patrícia Marx
FICAR COM PATRICIA
O álbum “Ficar Com Você”, lançado em 1994, marcou uma renovação estética na trajetória de Patrícia. Aos 20 anos, a artista deixava para trás o pop romântico que a projetara na década anterior, abrindo espaço para uma sonoridade mais urbana, sensual e sofisticada — em diálogo direto com o R&B e o soul norte-americano que dominavam o cenário mundial naquele início dos anos 1990. O disco, produzido por Nelson Motta, foi um divisor de águas. “Tudo convergiu para que a coisa fluísse da melhor maneira possível. Eu tive a oportunidade máxima de ter a Betty Lago (1955-2015) como minha stylist, o Nelson Motta como diretor musical. Tudo convergiu a favor.”

O álbum emplacou praticamente todas as faixas nas rádios e programas de TV, consolidando a maturidade artística de Patrícia. A faixa-bônus “Espelhos d’Água”, foi incluída na trilha sonora de Malhação (1995) e tornou-se um dos maiores sucessos da cantora — talvez o mais lembrado desde “Paty”, de 1987. Mas o passado de Patrícia não se limita às próprias gravações. Uma de suas canções mais emblemáticas, “Te Cuida, Meu Bem”, também de 1987, foi reinventada em 1995 por MC Marcinho (1977–2023), transformando-se num dos maiores sucessos do funk melody e, posteriormente, em um dos temas principais da novela “Vai na Fé” (2023). O diálogo entre os dois artistas — separados por estilos e gerações, mas unidos pela canção — nunca aconteceu em vida, mas se consumou na arte. “Eu amei muito, porque eu gostava muito do funk carioca nessa época. Era uma coisa mais Miami Bass, e tinha o Furacão 2000″.
Patrícia começou a trabalhar antes mesmo de compreender o que significava “trabalhar”. Ainda menina, a cantora integrava programas de televisão, gravava discos, cumpria agendas de shows que fariam inveja a artistas adultos. Mas, ao contrário de tantos casos em que a infância profissional se torna trauma, Patrícia não romantiza nem problematiza o passado — apenas o entende. “Naquele momento eu curtia muito, porque eu era criança e não tinha noção de nada que fosse me afetar de uma maneira negativa. Me afetou positivamente na época. Muita gente apostou em mim, e isso, ao longo dos anos, foi reforçando o meu talento e reforçando que eu fazia isso muito bem e que eu devia continuar. Então, hoje vejo por esse prisma. Para mim, está tudo certo. Se eu sou o que sou hoje, eu sou graças aos reforços que recebi ao longo de 35 anos da vida, com pessoas se emocionando comigo. Eu não vou ficar olhando para sempre o possível grande dano que foi a minha infância, minha adolescência… Vivo o presente e planejo muitos futuros.”
Em sua discografia, é possível perceber esse olhar retrospectivo que se move sem nostalgia. Várias de suas gravações revisitavam clássicos da música brasileira, mas nunca por fetiche do passado. Patrícia chama de “pesquisa”, e a palavra talvez seja a mais exata. “É uma pesquisa de joias raras da música, as quais eu gostaria de interpretar, que é muito mais um desejo interno de querer cantar aquilo. Independente de se ela é velha, ou se ela é nova, é uma necessidade muito pela via do desejo. Eu vou muito mais pelo que me toca, o que me move.”
“Minha vida é um livro de histórias loucas. A vida me oferece muitas coisas, porque eu sou uma pessoa curiosa, eu gosto de criar, então eu tenho muito material para contar histórias e criar discos" – Patrícia Marx
Essa curiosidade a levou também a olhar para além da própria música — para o país. Patrícia, reflete sobre o Brasil com um olhar que mistura afeto e sociologia. “A gente tem que olhar pelo lado social da coisa, porque o Brasil precisa ter comida na mesa. A arte, infelizmente, é o último item. Porque até para você conseguir apreciar uma música ou discernir uma música boa de uma música ruim, você tem que ter o básico, e as pessoas no Brasil não têm. Então, a gente tem que pensar muito sobre isso. E é óbvio que alguém de fora vai olhar as coisas lindas que nós temos e criamos a partir desse sofrimento que o social nos causa. Eu sou uma dessas pessoas, dessas artistas. Não sei se todos são, mas eu sou dessas que se tocam muito pelo social do Brasil — e hoje, cada vez mais, com a coisa da psicologia. Então, a gente tem que entender por esse prisma”.

A fala tem a serenidade de quem já testemunhou várias metamorfoses da indústria fonográfica — e sobreviveu a todas. Patrícia sabe que pode ser pop sem se render, que o sucesso não precisa custar a integridade. “É possível equilibrar ser uma artista pop com conceito, sem ceder à indústria. Se há um conselho que posso dar a uma jovem cantora é: nunca se venda. A quem estiver perdido, não se venda. Faça o seu melhor. Só você tem essa assinatura, ninguém mais. Nós somos seres únicos, nossa arte é uma peça única, e a nossa melhor peça. Não adianta se passar pensando apenas em dinheiro. Não que eu não goste de dinheiro, mas a minha essência é a minha coisa mais rara e inestimável.”
"Eu vivo intensamente, acredito muito nas coisas que eu penso, e nas que eu tenho vontade de fazer, porque a gente não está aqui o tempo todo. Eu gosto muito de estar aqui nessa vida, então não tenho o que reclamar dela" – Patrícia Marx
Em Patrícia, a escuta parece ser o eixo de tudo — tanto na canção quanto na clínica. Ela ouve o outro como quem decifra harmonias, percebe timbres invisíveis, identifica pausas que dizem mais do que as notas. Talvez por isso, a transição para a Psicanálise soe natural: uma cantora que, ao longo da vida, aprendeu a transformar dor, desejo e silêncio em melodia. No fim, o que Patrícia nos oferece é mais do que um repertório: é um modo de existir. Sua trajetória, feita de reinvenções e retornos, é também um gesto de resistência contra o esquecimento e a pressa. Patrícia Marx: a arte de permanecer inteira — mesmo quando tudo à volta insiste em se fragmentar.
Fotos: Luan Lopez
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